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O Regresso (Parte I)


Sombras Antigas


A súbita rajada de vento despertou-a. Por uma fração de segundo ficou desorientada. Há quanto tempo estava ali parada, estática, no grande relvado defronte à casa? Deu-se conta que não tinha estado a ver a casa à sua frente, mas a casa do passado, a da sua memória. Afastou a madeixa de cabelo do rosto e olhou o céu, a lua ia alta, cheia e redonda, relutante em deixar-se engolir pelas nuvens negras que a cercavam.


Olhou a casa de novo. Era bela. A velha torre medieval à volta da qual a casa foi sendo sucessivamente acrescentada, parecia irromper sombria e orgulhosa, como um velho guardião a quem os séculos emprestaram o seu poder. Cerrou os punhos com força afastando a emoção que pressentia. Não queria voltar a ouvir o som dos risos de crianças presos entre aquelas paredes.


Voltou as costas à casa e contemplou a alameda que levava ao portão. As árvores que a ladeavam, com as suas copas que se tocavam, cerradas, formavam um longo corredor negro e no fim dele, o grande portão de ferro escancarado. Procurou o relógio no bolso interior da capa e olhou as horas. “Ainda não passou uma hora.”, pensou. “Está tudo a correr como previsto.”. Ela sabia que Aris teria que deixar o carro a pelo menos uns trezentos metros do castelo e carregar o corpo a pé, toda essa distância. Os automóveis eram uma bela invenção, mas eram também muito ruidosos. A volta seria rápida. Ele viria leve, e o carro faria os três quilómetros que separavam as duas propriedades em minutos.


Melusine olhou para leste, na direção de Torneirie, deixando que os seus sentidos aguçados a inundassem de informações. Só o som do vento nas árvores e da miríade de animais noturnos. Nenhum som de motor. Ergueu o olhar acima da copa das árvores e um sorriso bailou-lhe no rosto. Um leve clarão no céu tingia já algumas nuvens de vermelho baço, ainda muito ténue, mas bem nítido para ela.



Há nove dias atrás estava ainda em Roma. Seguia a pista de um manuscrito cuja existência era especialmente duvidosa, mas que a ser verdadeiro, seria precioso. A pesquisa revelou-se infrutífera, e esbarrou em outras duas pistas que apontavam para locais diferentes. De qualquer forma, estadias em terras de Itália podiam revelar-se pouco saudáveis para um Capadócio. Mesmo com aliados no sítio certo, a sua presença dificilmente passaria despercebida. Ultimamente quando viajava pela Europa poucas vezes ia só. Não só por uma questão de segurança, mas também pela logística necessária às viagens e fronteiras cada vez mais fechadas e policiadas. O mundo dos humanos estava a mudar rapidamente, e nessa primavera de 1913, quase se podia cheirar a tensão no ar.


Tinha feito uma curta paragem em Istambul antes de partir para Roma, e ao anoitecer de um dia especialmente cinzento e pesado, daqueles que pressagiam grandes tempestades, o seu assistente entregou-lhe um telegrama. Havia sido entregue cedo, pela manhã, por um funcionário fiel da Embaixada de França. Era da firma de advogados que geria a sua herança em França. Sua irmã tinha morrido. Na verdade, o que estava escrito no telegrama era um pouco diferente – sua tia tinha falecido e seu tio desejava comprar a sua parte de Malaterre.

Há vários anos já, que tinha matado Melusine. Por razões práticas precisava de papéis legais, papéis com datas credíveis. Ela era agora Melusine Malaterre, a filha.


Nunca mais pensara na sua irmã mais velha, tinha-a banido da sua mente há muito tempo atrás. O desprezo que sentia por ela tinha dado lugar à mais completa indiferença. Mas Malaterre era Blanche também. E a memória de Blanche era a sua parte mais secreta, ainda inexplicavelmente doce e capaz de causar-lhe uma dor infinda. Sabia que estava dentro de si, enterrada fundo, adormecida. Tentava não despertá-la. O seu último pedaço de humanidade...

Ouvia a chuva lá fora, cada vez mais forte, fustigada pelo vento. Lá em baixo, a velha rua de pedras gastas devia por essa altura estar a transformar-se em num ribeiro. Melusine reclinou-se no divã e deixou-se embalar pelo som da chuva e pelo uivo do vento. Subitamente, a pequena sala foi inundada por uma luz tremulante. O clarão de um relâmpago, filtrado pelos losangos de vidro colorido da janela. O estrondo do trovão veio logo de seguida, sobressaltando-a. A tempestade desabava sobre a cidade. Levantou-se de um salto, como um gato, e olhou o telegrama amarfanhado na sua mão atirando-o com raiva ao chão. Não! Não ia permitir que o miserável tomasse posse de Malaterre. Era muito claro o que teria de ser feito. Ele iria dar-lhe tudo, inclusive a vida, e com um sorriso no rosto! Partiria para Roma, como previsto, e depois para França. Era tempo de retribuição.


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