O Regresso (Parte 3)
A Retribuição
A sua visita era esperada. Mal entrou na casa um espasmo de repugnância varreu-a de alto a baixo. A emoção perturbou-a deixando-a profundamente irritada, mas paradoxalmente, isso ajudou-a a controlar-se. A casa estava tal como ela se lembrava: fria, desagradável e pretensiosa, notava, enquanto seguia o mordomo através do enorme vestíbulo e depois por um curto corredor. O velho criado abriu a única porta no final do corredor, anunciando o seu nome numa voz rouca e cansada.
Melusine relanceou um olhar pela sala. Exceptuando a parede onde estava a lareira, à esquerda da porta de entrada, todas as outras paredes eram preenchidas por altas janelas. Como já tinha intuído, era a sala da torre da fachada lateral da casa. A temperatura era agradável e ela sentiu-se descontrair. Noal de Torneirie estava em pé, frente à lareira. Avançou com um sorriso no rosto, ao mesmo tempo que ele se aproximava dela, de mãos estendidas.
Sem parar de sorrir, observou o homem friamente. A figura seca, que caminhava ligeiramente curvada, pouco tinha a ver com o homem que ela tinha conhecido há muito tempo. Só a arrogância nos olhos estreitos de ave de rapina, e as marcas do vício no rosto permaneciam. “Ele está com medo e desconfiado”, pensou ela, ligeiramente divertida. Via nitidamente o laranja e verde-claro bem intensos, entrelaçados em azul-escuro, flutuarem à volta da criatura num padrão revelador.
- Bem-vinda a casa, minha sobrinha! – Disse com um sorriso aberto, enquanto lhe tomava as mãos. Mas os seus olhos não sorriam.
- Obrigada, tio, já era tempo… Este dia tinha de chegar – respondeu ela numa voz baixa, sem deixar de o fitar.
Ele olhou-a com alguma surpresa, e subitamente os seus olhos abriram-se de espanto – Extraordinário! É o retrato vivo da sua mãe. Tão igual… e no entanto tão diferente!
Ela sorriu, dando-lhe o braço e deixando que ele a encaminhasse para uma das poltronas frente à lareira. A curiosidade, que ele tentava disfarçar, era demasiado óbvia. Ela ouvia-o saltar de assunto para assunto, de forma inconsequente, numa tentativa patética para entender as suas reais intenções e o objectivo da sua vinda. Não se mostrou incomodada com o interrogatório, antes pelo contrário, respondeu a tudo candidamente, intimamente deliciada.
Aos poucos a tensão abandonou-o, diluindo a suspeita. Torneirie era arguto, esperto e oportunista, mas não era um homem inteligente. O crime era-lhe familiar, mas a sua arrogância fazia-o subestimar os outros e geralmente era o seu estatuto social que lhe providenciava imunidade. E agora, frente a uma estranha e bela mulher, um pouco da sua antiga sedução voltava. Melusine percebeu que a solidão o consumia.
- Sou um recluso, desde que sua tia morreu – disse ele, como que respondendo ao seu pensamento. – Mal saio, passo os meus dias nesta sala, e as minhas noites ali na alcova – prosseguiu com amargura, apontado para uma estreita porta que passava despercebida na parede da lareira.
Compreendeu perfeitamente as razões da sua amargura. Naturalmente circulavam rumores maldosos, depois da morte inesperada da mulher, entre os seus conhecidos e na vila. Mas ela começava a sentir-se impaciente e ainda era só a primeira noite. Seria tão simples terminar tudo já...
Inclinou-se e estendeu o braço, pondo a mão enluvada sobre a dele, num gesto de consolo ao mesmo tempo que o olhava com compreensão. Projetar o seu desejo na mente dele teve um efeito imediato.
- Esqueci as minhas maneiras, minha querida, o que deseja beber? – Disse alegremente, fazendo tenção de se levantar.
- Um vinho doce. Mas não se incomode, tio, eu sirvo-o – respondeu, enquanto se levantava e pressionava suavemente a mão dele.
Ao fundo da sala, entre duas altas janelas, a pequena consola estava repleta de garrafas e copos. Melusine serviu dois cálices de um vinho generoso, de um vermelho rico e profundo. Depois, retirou a pequena lâmina do bolso oculto na rosa do vestido, baixou um pouco a luva do braço esquerdo e fez um pequeno e preciso golpe. Algumas gotas de sangue caíram dentro de um dos cálices. Ajeitou a luva e voltou-se.
- À sua saúde, Senhor de Torneirie! – Exclamou ela, levemente irónica, entregando-lhe o cálice e levando o seu aos lábios. Ele sorriu-lhe, esvaziando o copo de um trago. Por uns minutos ficaram em silêncio, olhando as chamas na lareira, depois ela levantou-se. Não queria ficar mais ali.
- Voltarei amanhã à noite, se for do seu agrado – disse-lhe docemente. – Temos assuntos a tratar entre nós, não é verdade, meu tio?
- Sim, sim…volte amanhã minha querida… Amanhã falaremos dos nossos assuntos – retorquiu ele, com um olhar estranhamente confuso.
Na noite seguinte a visita foi breve. Ele estava visivelmente seduzido pela sua presença e das emoções da noite anterior só o medo restava. Um medo irracional dela, misturado com fascínio, que ele não saberia explicar. Mas também um medo que o habitava, o medo do crime que cometera. Um crime que a ela não interessava nada.
Beberam um licor de mirtilo, forte e quase negro, que ela serviu como na noite anterior. Novamente derramou o dela no espesso tapete da sala enquanto o via beber. De seguida, desculpou-se com uma leve indisposição prometendo voltar na noite seguinte. Antes de sair, viu o sincero desgosto no rosto dele.
Na última noite, ela ficou um pouco mais. Como nada do que fizesse seria questionado, serviu-lhe a última bebida de imediato. Bastava-lhe manter as aparências de forma superficial. Ouvia a conversa dele sem a ouvir, sentido o deslumbramento por ela aumentar de intensidade a cada momento que passava. O laço estava completo e o desfecho inevitável. Mexeu-se preguiçosa na poltrona, voltando o rosto para ele e olhando-o nos olhos.
- Fica pronto amanhã de manhã, o meu criado virá com instruções para ti e para te levar ao notário da vila. – Falou em voz clara e fria, notando a interrogação nos olhos dele. – Oh! Não te preocupes, é muito simples: vais doar-me a tua parte de Malaterre . Qualquer um dirá que isso é justo, não te parece querido tio? – Disse ela, com um sorriso trocista. – Depois, e admito que talvez seja inesperado… desejo ser a tua única herdeira. Quero tudo o que tens…Desejo tudo que tens, entendes?
Ele olhava-a fascinado, com um estranho brilho nos olhos de rapina, meio zonzo, assentindo com a cabeça a tudo o que lhe era ordenado.
Ela levantou-se e aproximou-se da sua poltrona, inclinando-se, quase roçando o rosto no dele.
- Não me decepciones – sussurrou ela, passando-lhe dois dedos enluvados pela face numa carícia distraída. – E amanhã, ao pôr do sol, vai ter comigo a Malaterre. Mas preciso que vás pelo caminho do bosque, não quero que te vejam…Vais receber a tua recompensa – concluiu num murmúrio doce.
Melusine, absorta, deixava correr as mãos pelas teclas do piano de uma forma quase indolente. Fragmentos de melodias soltavam-se do velho instrumento. Sentiu a respiração ofegante dele, ao entrar na pequena sala de música.
- Finalmente chegaste, começo a ficar faminta... – Disse em tom casual, sem o olhar.
- Mil perdões – respondeu ele mortificado. – Esperei o pôr do sol e vim a pé, pelo caminho do bosque…Ninguém me viu. E fiz tudo o que desejava – continuou, numa justificação precipitada.
O silêncio dela, e a escuridão da sala onde só as chamas da lareira e um candelabro sobre o piano deitavam alguma luz, fizeram o homem estacar a alguns passos. Mesmo sem o olhar ela sentia o seu desconforto e o frio insidioso do medo a invadi-lo.
- Blanche amava este piano…Lembras de Blanche, Torneirie? – As suas palavras pareciam vir de muito longe, como de um sonho. O som do piano cessou de repente, e ela voltou o rosto para ele.
O grito rouco que ele soltou foi menos pelo choque da pergunta, que pela visão do rosto dela. Um rosto sem artifícios, como uma aparição, com a terrível beleza da morte. Num instante ela estava na sua frente, tão próxima que sentia o suor dele jorrar como medo líquido.
- Responde verme! – Exclamou ela numa voz dura e gelada.
- Minha irmã, que usaste e destruíste por cobiça, com a cumplicidade da Outra. A quem acabaste por matar também – disse, sorrindo sinistramente. – Mas isso… foi justiça perversa.
O corpo do homem tremia violentamente como que pregado ao chão por uma força invisível. Os seus olhos, como os de um animal acossado, olhavam em volta, em pânico, procurando uma saída.
- Eu não matei Blanche! Estais enganada, ela matou-se – respondeu esganiçadamente. – Não, não é possível…não podeis ser Melusine. Ela está morta, vós sois jovem… - Choramingou, com o terror e o fascínio no olhar.
- Shhhhh – fez ela, passando-lhe o dedo pelos lábios ternamente. – Não te preocupes, todas essas dúvidas perderão o sentido dentro de alguns instantes. E não, não mataste Blanche com as tuas mãos. Fizeste pior. Levaste-a ao desespero e ao horror de ter de procurar a morte pelas próprias mãos. – Disse-lhe brandamente.
Subitamente endureceu. – De joelhos! – Ordenou.
O homem caiu, tremendo de terror, numa luta inglória contra si próprio. Melusine rodeou-o por trás e agarrando-o pela nuca expôs-lhe o pescoço. Depois, cravou as suas presas, sentindo o prazer de a cada gole de sangue o mergulhar nas trevas, sentindo a vida esvair-se a cada batida a menos do seu coração, até nada mais restar que um corpo inerte e seco a seus pés.
O clarão a leste era agora bem nítido, o fogo parecia lamber as nuvens. Desviou o olhar, com um leve arrepio. Ouviu o som do automóvel que se aproximava, parando a alguns metros dela.
O homem saiu do carro, encarando-a em silêncio, calmamente.
- Demoraste – disse num tom casual, mas com uma leve censura na voz.
- Sim, um pouco. Desculpe-me. Tive de certificar-me que tudo correria como desejava. Muita madeira antiga, ardeu como palha…Vão ter de se esforçar para o encontrar - disse ele esboçando um sorriso tímido.
Melusine assentiu com a cabeça, sem responder. Olhou a casa pela última vez, “acabou, encerrei o passado… Descansa em paz irmã”, pensou, sentindo um absurdo nó na garganta. Voltou-se e entrou no carro, os estofos frios provocaram-lhe uma sensação de alívio. Fechou os olhos. – Vamos! Temos uma longa noite pela frente – disse quase num murmúrio.
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