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O Regresso (Parte 2)

Intermezzo


A luz dos faróis iluminava o grande portão de ferro negro e só o ruído do motor do automóvel perturbava o silêncio envolvente. O homem saiu do carro e em duas passadas ágeis aproximou-se do portão, a primeira porta não cedeu, mas a segunda estava só encostada. Empurrou a grade abrindo-a toda para trás, depois destrancou a outra.

A sensação de agonia de Melusine aumentava à medida que o carro avançava pela alameda. Era assaltada por cheiros e sons há muito esquecidos, o odor particular do jardim, o marulhar da água no pequeno rio atrás da casa, o som do vento nas faias e carvalhos da alameda que se prolongava no antigo bosque…Com esforço bloqueou os sentidos para que acalmasse.


A Lua iluminava a imponente fachada da casa. Era tarde já, e a única luz visível provinha de um candeeiro a gás que deitava uma luz desbotada, no topo da grande porta. O carro parou. Por um minuto ficaram em silêncio, quietos. Depois ela esticou o braço, tocando levemente no ombro do homem sentado ao volante. Sem uma palavra ele saiu do carro, dirigiu-se à porta e puxou a corrente que acionava a sineta no interior da casa.

Silêncio. Puxou a corrente de novo, desta vez de forma mais insistente. Um minuto depois ouviu-se o som da chave a rodar na fechadura e uma mulher abriu a porta. Era uma mulher jovem e roliça, com tranças louras a escaparem-se da touca branca de dormir. Trazia um xaile de lã colocado às pressas, sobre a camisa de dormir, e que ela tentava sem sucesso endireitar. A mulher deu um passo atrás quando encarou o estranho de capote negro na sua frente, ao mesmo tempo que abafava uma exclamação, tapando a boca com a mão.


Dentro do carro, ainda levemente agoniada, Melusine não conseguiu impedir-se de sorrir. Aris conseguia projectar uma presença intimidadora quando queria. Servia-a há já alguns anos. Seu assistente, guarda-costas, chauffer... O último de uma antiga família grega de Kayseri. Era inteligente, culto, falava o estritamente necessário e de uma fidelidade total e absoluta, mas guardava uma independência de espírito que lhe agradava. Precisava de alguém com discernimento próprio, com recursos. E depois, era atraente… coisa que a criada com toda a certeza, deveria estar a constatar.


- Quem são os senhores, e o que desejam? – Perguntou a mulher, um pouco afogueada mas já recomposta.


Melusine ajeitou o capuz da sua capa de forma que tapasse parte do rosto, e saiu do carro. Estava estranhamente emocionada e não queria que fosse notado. Ouviu Aris declinar o seu nome, enquanto se dirigia à porta. A confusão da mulher era evidente.


- A Senhora Melusine! Mas eu ouvi, quer dizer… todos pensávamos que ela… - balbuciou a criada.

- A filha... sou a filha. – Disse suavemente, ao mesmo tempo que transpunha a porta e entrava no grande vestíbulo.

- O Senhor de Torneirie…Meu tio – emendou ela. – Já está recolhido, naturalmente…?

- O senhor não vive mais aqui – respondeu a criada. – Desde que a senhora faleceu. Há já um mês que se mudou para Torneirie. Pobre senhor, dizia que não conseguia mais viver aqui, via a senhora em todos os cantos…


Melusine andava lentamente pelo vestíbulo, meio distraída, mas algo na voz da jovem a fez voltar-se. Aproximou-se dela rapidamente e olhou-a, fixamente. A mulher recuou, instintivamente assustada.


- Como foi que minha tia morreu? – Perguntou Melusine, num sussurro insinuante.

- Ah, minha senhora, foi uma tragédia! Foi muito inesperado. Ela, que gozava de tão boa saúde! E depois caiu, ali naquela escada, e partiu a perna. Nunca mais se levantou ou saiu do quarto, e o senhor sempre do seu lado, noite e dia, não deixava ninguém tratar dela, dizia que só ele sabia o que ela precisava. E o pobrezinho tinha estado doente antes, há semanas que andava muito adoentado, só vomitava e não segurava nada no estômago. Mas enfim, quem morreu foi ela, ao fim de duas semanas. O médico tratou da perna mas depois eram só complicações, ia definhando cada vez mais. O senhor disse que foi uma infecção… E depois…depois despediu toda a gente. Só ficámos eu e o ajudante do jardineiro para a casa não ficar vazia…Uma tragédia, foi o que foi! – A moça calou-se, ofegante e embaraçada. Baixou os olhos ruborizada, surpresa por ter falado tanto.


Da torrente de palavras, ela reteve o essencial. “Ele matou-a…”, pensou sem surpresa. “Mais do que isso, tentaram matar-se um ao outro, como dois escorpiões. Mas ele teve ou mais sorte, ou mais esperteza.”. Reprimindo uma irresistível vontade de rir, olhou a mulher na sua frente. O rubor manchava-lhe ainda a pele branca do rosto, descendo pelo pescoço até ao colo, fazendo sobressair as veias azuis na pele macia. Mordeu o lábio, voltando-se bruscamente. Não precisava de distrações. No dia seguinte dispensaria os dois, com uma boa compensação. Não queria falatórios na vila sobre os seus hábitos, não até tudo ter terminado.


- Vai-te deitar, pequena, já perturbámos demais o teu descanso – disse, enquanto se dirigia à grande escadaria de carvalho. – Aris te dará as instruções necessárias amanhã. Ah! E não te preocupes, conheço a disposição da casa como a palma da minha mão. – Continuou ela sem se deter e antecipando as objecções da criada.


A noite espalhava as suas sombras e Melusine olhava-se ao espelho do toucador do seu antigo quarto. A maquilhagem fazia milagres, tinha de admitir. Um pouco de cor nos lábios e no rosto, espalhada com sabedoria no pescoço e colo que à luz desmaiada do gás dava à sua pele de uma palidez mortal, um tom pérola, acetinado e deslumbrante. Os olhos verdes e transparentes tinham ganhado um subtil reflexo avermelhado e isso, ela não podia mudar… Tinha prendido algumas madeixas do seu longo cabelo negro atrás, na nuca, deixando o resto solto. O vestido preto de seda caía a direito, junto ao corpo, revestido por uma delicada renda negra. Era cingido logo abaixo do peito por uma faixa de cetim preto, que se unia numa rosa, feita no mesmo cetim. Não levava nenhuma jóia, à excepção do seu colar e da pérola negra engastada em ouro velho, do gancho que lhe prendia os cabelos.

Levantou-se e calçou as luvas. Depois, pegou numa estranha lâmina em miniatura, fina e recurva numa extremidade, e delicadamente inseriu-a no pequeno bolso oculto na rosa da faixa do vestido. Os seus planos tinham sofrido uma ligeira alteração, mas sem grande relevância. Teria sido mais simples se o maldito estivesse ali, em casa, mas não tinha importância…Saiu do quarto, descendo as escadas rapidamente com a capa pela mão.


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