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O Livro Dos Mortos Do Antigo Egipto – Um Guia Para O Além (Realizada em: 13/06/21)

No Antigo Egipto a religião fundia-se com a magia. A sociedade egípcia era profundamente ritualizada, tanto nas celebrações da vida quanto nas relativas ao culto funerário. Em todas as áreas – políticas/cívicas, religiosas, artísticas, etc – procuravam legitimar todas as suas ações com constantes referências à criação do mundo, idealizado e governado pelos deuses até à criação do homem.

A natural evolução da sociedade, que no Egipto foi muito lenta, só era admissível à luz dos princípios personificados pela deusa Maat: a ordem do mundo e da sociedade, e os ideais de justiça, verdade, e equilíbrio. Qualquer manifestação contrária ao princípio de Maat, era a própria representação das forças da desordem e caos.

Entre os antigos egípcios tanto a imagem como a palavra tinham poder mágico. Assim, a arte tinha um carácter funcional, ela não servia só para embelezar e usufruir, ela tinha uma função. O desenho de uma pessoa era a sua própria manifestação, uma estátua funerária era também o próprio morto.

Qualquer dano num mural que representasse o morto, atuava no sentido de deturpar ou apagar a memória do homem dependente dela. Era uma ameaça de aniquilação e da continuação da existência na vida do Além.

Uma estátua funerária danificada implicava magicamente uma deformação no próprio morto. Se uma estátua apresentasse o nariz partido, o morto enfrentaria a eternidade sem o sentido do olfacto. Então, o carácter mágico da religião garantia que uma prótese, ou o verbo, a palavra transformada em ação, pudessem restituir quaisquer membros ou sentidos perdidos pelo morto.

Para além do poder da representação da imagem, havia o poder do verbo: o “nome” de uma pessoa era um dos sete elementos que a compunham. Pronunciar o nome de um morto era manter a sua memória e impedir que ele caísse no esquecimento, visto que essa era uma das condições para se “morrer uma segunda vez”.

Saber o nome de alguém era também uma forma de poder, pois dizer um nome de uma pessoa era um exercício que poderia ser positivo ou negativo, dependendo da intenção. Se os mortos faziam parte da sociedade dos vivos, também os vivos faziam parte da sociedade dos mortos.


ORIGENS -

O “Livro para Sair à Luz do Dia”, que atualmente conhecemos como “Livro dos Mortos”, recebeu essa denominação do egiptólogo alemão Karl Richard Lepsius, o primeiro a traduzi-lo, em 1842. Lepsius também foi o responsável pela divisão das fórmulas em 165 capítulos (um capítulo para cada fórmula mágica, hino, litania ou feitiço).

Desde 1842 até aos dias de hoje, mais capítulos foram adicionados, pois existem variadas versões e nem todos os papiros contêm o mesmo número de fórmulas ou de ilustrações (vinhetas). Presentemente são conhecidos 194 capítulos.

Contudo, existem ainda muitos papiros por traduzir ou em processo de tradução. Um dos mais famosos “Livro dos Mortos” é o Papiro de Ani, com 24 metros comprimento, que pertence ao Museu Britânico.

O “Livro dos Mortos” foi o texto funerário mais comum do Antigo Egipto. A sua história começa quando os reis da XIII dinastia deixam a sua capital a sul do Cairo, sobem o Nilo e retornam a Tebas (c. 1690 a.C). A mudança para Tebas criou a necessidade de redação de uma nova literatura funerária, uma adaptação de antigos textos funerários, às novas concepções.

Deste modo, aquilo que no Império Antigo, durante o terceiro milénio a.c., era retratado nas paredes das pirâmides só para uso dos faraós e da sua família, e que depois passou a ser maioritariamente documentado nos sarcófagos, já tanto para uso da família real quanto dos nobres e altos dignitários, durante o Médio Império, finalmente passou para o papiro, durante o Novo Império, ao alcance de todos os egípcios.

A estes três conjuntos de textos, convencionou-se chamar de “Textos das Pirâmides”, “Textos dos Sarcófagos” e “Livro dos Mortos”, respectivamente.


FUNÇÃO E FORMA –

O morto dependia dos vivos para lhe preservarem o nome, fazendo com que sua existência fosse perpetuada, mas também dependia de si mesmo: para que sua memória fosse eternizada era fundamental que ele, o morto, tivesse memória.

É nesse contexto que o Livro dos Mortos pode ser considerado um guia, pois tratava-se de um instrumento fundamental no sentido de fazer o morto lembrar-se dos encantamentos necessários ao sucesso de sua caminhada no Mundo dos Mortos.

O ritual da mumificação era também fundamental, pois reconhecer-se no além era uma pré-condição vital à perpetuidade da existência.

Não se reconhecer era não ter repouso, era não se encontrar consigo mesmo: a perda da memória tinha, portanto, como consequência mais premente, a perda do lugar e da identidade social do morto no Além. Não ter memória significa estar susceptível a uma “segunda morte”, a da não existência.

Assim, a segunda morte remete à falta de condições que permitam à alma sobreviver, pois o corpo já se encontrava inanimado pela primeira morte. A morte em si não colocava um fim na existência, a não ser de maneira parcial, a morte do corpo físico.

Mas ela era sempre acompanhada de um grande perigo, o de extinguir a existência da alma. Esta possibilidade deveria ser afastada com precauções na forma de fórmulas mágicas, amuletos e rituais precisos.

A segunda morte era causada pela condenação da alma pelo tribunal divino diante de Osíris, pela incapacidade do morto em mover-se no Outro Mundo e pela perda do nome (memória).

Em resumo, desde o Império Antigo, os egípcios desenvolveram fórmulas que tinham a finalidade de agir na conservação da vida através da perpetuação da memória. Essas fórmulas foram representadas em muitos suportes, nomeadamente as paredes das pirâmides, os sarcófagos, e os papiros, depositados junto ao corpo do morto.

O “Livro para Sair à Luz do Dia”, de origem divina, era um guia que proporcionava ao morto lembrar-se de si mesmo, de modo que ele próprio pudesse ter conhecimento dos seus caminhos no Mundo dos Mortos.

A sua função era dar ao morto os meios de obter três condições básicas para a sua sobrevivência no Mundo dos Mortos: as preces dedicadas às grandes divindades, a regeneração e as transformações, e o domínio das forças divinas por meio do conhecimento de seus nomes secretos.


Assim o morto seria capaz de sair à luz do dia, de leste para oeste como o sol, continuar a sua existência, rever a sua casa, proteger os seus familiares e amigos, vingar-se de seus inimigos, desfrutar das oferendas, adorar o deus sol e receber as bênçãos dos deuses.

Obtendo a liberdade de movimentos e de alimentação tendo: “a felicidade no céu, a riqueza na terra e a vitória no Mundo Inferior”.

Essa finalidade do livro aparece resumida no título da primeira fórmula ou capítulo: “Início das fórmulas para sair ao dia, e as glorificações (para) sair depois de ter entrado na necrópole (do) glorioso e Belo Ocidente. Fórmulas que devem ser recitadas no dia do sepultamento (e pelas quais o morto) entrará depois de haver saído”.

Desde os primeiros exemplares, o “Livro dos Mortos” aparece como uma compilação de fórmulas, mais ou menos longas, repartidas em capítulos em número e sequência que varia de papiro para papiro. Raramente utilizado antes para este fim, o papiro caro, mas prático, adequou-se muito bem, formando rolos que eram colocados próximo à múmia.

O papiro permitia concentrar numa superfície reduzida um grande número de preces e encantamentos, além de vinhetas ilustrativas que garantiriam a proteção do morto. Estes rolos de papiro possuem uma altura entre 30 a 40cm e o comprimento que varia de versões resumidas com 1 a 2m até as versões completas com 15 a 37m.

O papiro não foi o suporte exclusivo para o “Livro dos Mortos”, podendo encantamentos e ilustrações aparecerem também em paredes de túmulos e templos, sarcófagos, bandagens de múmia, estelas, estatuetas funerárias, rolos de couro ou cerâmica.

O “Livro dos Mortos” tem os textos escritos com tinta preta e os títulos das fórmulas e destaques escritos com tinta vermelha. Cada capítulo é precedido por um título, escrito em vermelho, que define os propósitos da fórmula.

No final de cada texto pode vir uma rubrica, escrita também em vermelho, que especifica o modo de utilização do capítulo. Alguns capítulos trazem após a rubrica uma nota final garantindo a sua eficácia: “ funciona verdadeiramente, um milhão de vezes”.

Dois grandes temas estão presentes no “Livro dos Mortos”: o primeiro é a vitória do morto no tribunal de Osíris, onde após negar as suas faltas, seu coração é pesado, e ao ser confirmada a sua inocência, ele é declarado “justificado” ou “justo de voz” esse epíteto significa que o morto satisfez as condições de Maat.


Esse primeiro grande tema era composto por dois passos: as Confissões Negativas e a pesagem do coração. As Confissões Negativas ( “eu não matei” “eu não roubei” “eu não fiz ninguém chorar”, etc) são um conjunto de quarenta e dois encantamentos que tinham por finalidade assegurar a absolvição do morto diante de pretensas acusações.

O morto, diante dos guardiões do Mundo dos Mortos, precisava professar corretamente o nome de cada um, bem como confessar o que não havia feito de errado.

Cada guardião escutava uma declaração de inocência, sendo a lembrança do encantamento e a sua pronúncia as chaves da absolvição. A negação dessas acusações era fundamental. A inocência dava-se a partir da negação.

Depois das Confissões, dava-se a pesagem do coração, o segundo passo no tribunal de Osíris. O coração do morto era pesado contra uma pluma da deusa Maat. Se houvesse equilíbrio, o morto era declarado “justo de voz”e estava apto a entrar nos domínios de Osíris, tornando se capaz de sair à Luz do Dia.

Não ser aprovado no julgamento, ser reprovado perante Osíris, significava o desaparecimento total do ser. Seria devorado por um monstro híbrido chamado Ammut, a personificação da segunda morte.

O outro grande tema, é a transformação do morto em um espírito glorificado (akh) diante do deus Rá, tornando-o capacitado, assim como os deuses, a viajar na Barca Solar e a desfrutar dos Campos dos Juncos.

A luz do sol, fonte da vida, levada ao Mundo dos Mortos pelo deus Rá (ou Ré), é um dos elementos centrais nos textos. Como consequência do morto ser um justificado, ele pode desfrutar da glorificação e viajar na Barca Solar pelo Mundo Inferior.

Os restantes capítulos referem-se à chegada do cortejo fúnebre à necrópole, pela passagem das Portas, a hinos a Osíris e a Rá, de fórmulas mágicas de proteção e de glorificação a Osíris e ao deus do Sol, de como confeccionar amuletos funerários, e até, de uma descrição geográfica do Mundo Inferior.

O “Livro dos Mortos”, marca um momento decisivo na história não só dos textos funerários do Egipto, mas do próprio ser humano diante de questões universais como a existência de uma alma imortal. As consequências das ações terrenas na vida após a morte, onde os justos serão glorificados e desfrutarão da vida eterna. Não reflete outra coisa senão a busca incessante pela eternidade.



NOTAS –

Osíris: foi, primitivamente, a deificação da força do solo, que faz a vegetação crescer; disto derivou seus atributos posteriores, que o exaltam como o inventor da agricultura e consequentemente o propiciador da civilização. Mais tarde, seus mitos passaram a representá-lo como um mítico faraó que teria governado o Egipto em tempos imemoriais, sendo traído por seu próprio irmão, Seth, que o mata para obter o trono. Osíris, vencendo a morte, renasce no Além, tornando-se o Senhor da vida pós morte e juiz dos espíritos que lá chegam. Conceito de ciclos de vida e renascimento que tanto a vegetação quanto a passagem para o além carregam. Assim, pode-se dizer que, resumidamente, Osíris é o deus do renascimento. Marido de Ísis e pai de Hórus, era ele quem julgava os mortos na "Sala das Duas Verdades", onde se procedia à pesagem do coração ou psicostasia.

O “nome” (ren) de uma pessoa era um dos sete elementos que a compunham – os outros seis elementos eram o “corpo” (khat), a “sombra” (shut), o “coração” (ib), o “princípio estático” (ka), o “princípio dinâmico” (ba) e o “espírito glorificado” (akh),

Maat é a deusa da verdade, da justiça, da retidão e da ordem. É a deusa responsável pela manutenção da ordem cósmica e social, esposa de Toth (alguns escritores defendem que o deus-lua Toth era o irmão de Maat). Ela é representada como uma jovem mulher ostentando uma pluma de avestruz na cabeça, a qual era pesada contra o coração (alma) do morto no julgamento de Osíris.

Tote ou Djeuti em egípcio: Dḥwtj) é um deus egípcio do conhecimento, da sabedoria, da escrita, da música e da magia. Na arte, era geralmente retratado com a cabeça de íbis ou babuíno, animais consagrados a ele.

Hórus deus dos céus e dos vivos

Rá ou Ré deus do sol, criador da vida.


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