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O Despertar de Claire

Antes de abrir os olhos passei a língua pelos lábios ressequidos pelo tempo e senti o gosto de sangue (supostamente o resto da vitae do vampiro). Pensei em limpá-lo, mas a sensação que o sabor causou em meu corpo me deu prazer. Aquele gosto não me era estranho, duas vezes já o tinha provado, o meu próprio, e da pessoa que eu havia jurado matar, depois de ter sido seqüestrada pela tropa que estava sob seu comando e que havia me imposto tortura psicológica e abuso do meu corpo. E eu o matei. Friamente. Olhei em seus olhos e sem hesitar cortei-lhe a jugular, depois de tê-lo enganado com promessa de amor eterno. Confesso que foi até sem querer o experimentar desse sangue, ele jorrou daquele corpo imundo, responsável por tantas mortes no campo de concentração, mas sucumbiu mediante um corpo nu e sinuoso à sua frente. Humanos tolos.

Tais pensamentos não me perturbavam mais. Os horrores de uma guerra sem sentido, pessoas que eu amava, minha família, todos torturados e mortos, crianças queimando, as aberrações que eu presenciei e que me assustavam, agora eram apenas memórias. Meu interior estava mudado. Eu estava fria como meu corpo. E sem coração.

Na primeira tentativa de erguer a cabeça bati em algo duro. Agora percebi nitidamente: estava presa! Abri os olhos e só havia escuridão. Junto ao meu corpo havia outro corpo. Senti os ossos daquele cadáver, o que me dizia que estava ali há muito tempo. O que significava aquilo? Onde eu estava?

A escuridão estendia-se por todo compartimento, mas eu estava viva! Todos os meus sentidos entraram em alerta. Estou viva! Tentei gritar, bati na madeira e o som que ela emitiu foi ensurdecedor. O barulho amplificava. As sensações eram intensas demais...

Na escuridão eu senti solidão. Senti agonia por estar presa. Senti raiva por estar impotente. Não conseguia mover-me e aquela prisão estendeu-se para meu cérebro. Eu não conseguia pensar direito, estava confusa. Quanto tempo se passou? Ignorando que não poderiam me ouvir, gargalhei emitindo o som mais assustador que veio das entranhas de meu pulmão e pude ouvir bandos de pássaros voando, assustados. – Voem seus covardes! Eu não hesitarei em destroçá-los com as minhas mãos. E continuava rindo, pensando naqueles seres morrendo esmagados!

Viva ou morta? Qual meu estado atual? Estou morta, mas pela maldição viverei eternamente.

Meus sentidos não estão somente aguçados, mas em descontrole. Estou super sensível a sons, cheiros, toque e paladar... A dimensão do meu enclausuramento quase me enlouquece... Morta, e ainda viva. Acordei nesse estado e minhas emoções estão tumultuadas. No meu íntimo mais profundo o confronto entre minhas antigas crenças, carências e misérias e meu estado atual, me fazem quase enlouquecer. Uma voz interior grita, “há uma nova vida bem à sua frente, é real, existe a vida após a morte”

A batida na madeira fez-me abrir os olhos, contrariando a minha solidão e imediatamente reconheci a voz que fora a última que eu ouvi, antes de deixar a humanidade. O único ser com respostas as minhas indagações sobre a morte e o que haveria após ela. Havia chegado aos seus ouvidos que eu, ainda que presa pelos nazistas fazia experiências com os mortos. O que não me faltavam eram pessoas agonizando, e todos os dias dezenas de cadáveres. Onde eu fora colocada, dentro do laboratório de pesquisas do campo de concentração (para fugir ou adiar minha morte, eu ofereci meus serviços para os nazistas, pois dominava a arte de dissecar cadáveres através do estudo para ser enfermeira) seres humanos eram as cobaias. Com pesar, abri o abdômen do meu vizinho e arrancara a pele do homem que entregara pão em minha casa natal. Ao som de Mozart eu executava cada tarefa a mim atribuída. Aplicava-lhes drogas que eram fatais. Antes de partirem para “a morte”, eu pedia que voltassem para me dar um sinal do que sentiram, mas aqueles seres infelizes não fizeram contato. No entanto minha busca por explicações acerca da morte era ininterrupta.

Lembrei-me de como eu o respeitava, e de alguma forma sentia-me protegida por ele.


- Bem vinda à vida eterna Claire, você recebeu a benção da imortalidade e a maldição de Caim. És agora um membro de minha prole, meu sangue é teu sangue.


Agitei-me com a lembrança, mas aqueles passos estranhamente me acalmaram. A voz agora ressoava pelo ambiente e era firme e poderosa, conversava com outras pessoas. - Imagino que estejas acordada...


E ele continuou: - Além dos cinco sentidos, as emoções também estão à flor da pele, e ainda tem a fome.


- Senhor (assim eu sempre me referia a ele), essa ânsia não me deixa raciocinar direito. Uma ira, uma fúria dentro de mim, que o meu racional acaba esvaindo-se.

- É preciso lutar contra essa força - ele disse calmamente - Pois você não pode perder o foco filosófico de sua busca inicial.


Eu sabia do que ele estava falando, meu corpo tremia pela fome que sentia. Atordoava-me e me enfurecia. Quanto tempo se passara, eu indaguei, e a reposta soou calma.. - Tens a eternidade, o tempo não é um problema para você.


- Enquanto você afunda no mundo da maldição, aprenderá sobre o mundo dos mortos-vivos e conhecerá outros membros. - Disse isso e afastaram-se.


Neste momento eu entendi que a não vida é de fato uma desgraça! E tendo essa compreensão, não temi extravasar o ódio e desprezo que sentia pela humanidade. Todo princípio moral esvaiu-se, e os conceitos ortodoxos sobre céu e inferno agora não faziam mais sentido. Eu cometeria atos que aos olhos dos humanos, fracos e com seus valores morais, seriam aberrações. Eu não me importo. Abandonei toda religiosidade e dei lugar a um sentimento que se apoderava com muita força, o de liberdade! Eu matarei para saciar a minha fome, não será um assassinato, pois os humanos servirão às minhas necessidades. A despeito do Poder que me foi transmitido pelo abraço do meu Senhor, tenho que ficar atenta para não sucumbir à fome que queima em meu interior. Esses pensamentos ocorrem em velocidade da luz, percorrem todo meu corpo, que começa a tremer. Esmurro com violência as paredes de madeira, a besta dentro de mim insistindo pelo sangue, o sangue que Caim derramou. Por um breve instante relembro o que sentia o meu coração, agora morto. Ele jaz, deixando meu corpo frio. Adormeço.

Todo despertar seguinte merecia a minha atenção. Os ruídos externos me indicavam sobre o dia ou a noite, embora o tempo não fosse um problema para mim. A eternidade me acenava, convidando-me a buscar respostas. O que aconteceu com todas as almas das pessoas que queimaram vivas nas fornalhas dos nazistas? Lembrei-me do cheiro de carne torrada expelida pelas chaminés, e das tentativas de esconder das crianças alemãs, filhas dos comandantes nazistas, a realidade grotesca em que estavam inseridas, sem saber.

Registrado em minhas lembranças estavam os olhares perdidos dos judeus aprisionados. Olhar que pressentia a morte, etérea, sem rosto e com uma foice na mão. Eu sempre rejeitei essa ideia, porque a morte sendo Ela tão “definitiva”, não poderia ser descrita. Uma certeza, ela era voraz naquele lugar, mas longe de ser etérea, tinha olhos azuis, e a pele branca dos alemães. Quem sabe a morte não fora criada para livrar o próprio homem da sua insanidade...

As primeiras noites nas trevas foram de grandes revelações. A morte não era paz, mas ainda não conseguia descobrir o que havia por trás do véu... Mas com certeza, estar enclausurada causou uma grande ressonância em meu espírito. Passei os primeiros dias introspectiva, com medo do que se me apresentava, a imortalidade. Sempre permanecia em silêncio, travando uma luta diária com a besta dentro de mim.

Todas essas perguntas me trouxeram até aqui, e agora estou faminta.

Eu aprendi a reconhecer o caminhar do meu Senhor. Embora silencioso, era compassado, parecia caminhar sempre pensando, filosofando sobre tudo que via.

Trazia-me perguntas sobre o que eu estava sentindo, sobre as descobertas que andara fazendo sobre meu estado atual, e orientava-me como controlar a besta.

- Um vampiro sem controle é uma vergonha. Ele mata por poder, e não por necessidade. É preciso se alimentar, terás seu alimento, mas não o mate. O objetivo do nosso clã é nos aprofundar sobre os mistérios que cercam a morte. Por isso você está aqui, por isso cheguei até você.


Dito isso, abriu o caixão em que eu me encontrava. Liberta, precisava de sangue imediatamente, o que foi resolvido com o sangue de um humano ferido mortalmente na guerra, e que ele me trouxera.

Eu senti a besta vampiresca gritando selvagemente dentro de mim. Saciada.

- Junte-se a nós, seu tempo de clausura está cumprido.


Levantou-me apenas com o pensamento, enquanto suas crias me cercavam, eu estava pronta para a nova “vida / morte”.

Não havia mais humanidade, pois isso é contrário à minha sobrevivência. Estava claro para mim que assassinar um humano não era pecado, não era um crime e passei a ter a convicção que a morte é um conceito digno de adoração e louvor. Esta “consciência” me proporcionou autocontrole, e assim subjugava a minha besta interior. Com a convicção de que a morte era a minha busca, eu conseguia escapar do frenesi. Transformei todo o sofrimento que passei nas mãos dos nazistas, que me infligiram, em uma espécie de reverso, e descobri que era intenso o prazer na dor que eu poderia causar a outros.

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