O Despertar
Acordei num mundo de teias, pegajosas, que se enredavam em mim, pareceu-me ter demorado uma eternidade a libertar-me. Uma sensação de opressão sufocava-me. Abri os olhos, e a ausência sem limites da luz invadiu os meus sentidos. A desorientação trouxe o terror, esbracejei e tentei levantar-me, os meus braços bateram em algo sólido, a cabeça no que deveria ser a tampa da minha prisão, o ressoar do embate atordoou-me, estava presa! Mais que as trevas, era o confinamento que me era insuportável. Não, não podiam ter-me sepultado viva...
Instintivamente soube que teria de me acalmar, ou enlouqueceria. Tentei lembrar-me, saber porque estava ali. Concentrei-me, tentando aliviar a tensão, memórias dispersas, confusas, assaltavam-me, levei as mãos aos lábios e comprimi-os, ao menos as minhas mãos tinham liberdade de movimentos. Por momentos, fiquei espantada com a sensação, com a intensidade selvagem do toque em mim própria, sentia o meu corpo frio, como nunca o tinha sentido antes. Pousei a mão no peito e não sentia as batidas do meu coração, nem o breve movimento da respiração. Como podia ser, não respirar e sentir-me viva ao mesmo tempo?
Os meus sentidos estavam dolorosamente alerta, o cheiro a umidade, a espaço fechado, incomodava-me, sentia também outros cheiros, misturados, mas que curiosamente conseguia perfeitamente identificar. O cheiro a madeira, a metal ferrugento e a pedra. Pelo menos não tinha sido enterrada, de certa forma isso confortou-me. Dei-me conta que podia ouvir tudo com uma intensidade assustadora. Todos os pequenos sons de vida lá fora, de todas a pequenas criaturas que se moviam perto de mim. Todos vivos... O medo invadiu-me de novo, mordi os lábios com força e a dor ligou-me à realidade, senti o gosto do sangue, e ao mesmo tempo uma ânsia nova, desconhecida, errada, tomar conta de mim.
Talvez tenha dormido, ou ido para algum lugar entre o sonho e o nada, não sei...Ouvi um ruído leve, diferente, o rodar de uma fechadura, uma porta que se abria e passos. Alguém parou perto de mim, tão perto que conseguia sentir o seu cheiro, uma mulher. A sua energia, embora diferente da minha, era da mesma natureza. Ouvi a sua voz calma, uma voz que eu conhecia " sinto uma nova energia, renasceste."
Eu tinha mil perguntas a fazer-lhe! A minha urgência e confusão deviam ser tão evidentes que senti a compreensão na voz dela, dizendo-me para me acalmar, para deixar o sangue sentir por mim. Que deveria aproveitar este tempo para refletir na minha nova existência e que meu Senhor viria ver-me brevemente, que ele me diria o que precisava de saber. Falei-lhe naquela nova ânsia, na nova e estranha sensação que sentia, que pressentia que iria me dominar, creio que ela deve ter sorrido... Fiquei só, de novo.
O tempo parecia diluir-se, sentia-me afogar num pesadelo absurdo. A impotência, o medo e a percepção de que aquela pontada de sede que sentia, iria aumentar, não me deixava pensar, a ansiedade era tão grande que parecia ir explodir. Subitamente ouvi um som familiar, o chocalhar de chaves, passos leves que se aproximavam, e mais uma vez pararam perto de mim. Soube imediatamente quem era, apesar de não o ver. A sua voz baixa e pausada, aquele tipo de voz com que se fala às crianças, quando estão confusas e com medo, parecia encher toda a câmara. Ele falou-me da minha nova existência, do porquê de estar ali, da necessidade da clausura. Que eu teria de entender e refletir sobre a minha não-vida, sobre a morte e o que ela significava. Mesmo que não achasse as respostas, o importante era a procura, o ter consciência da gravidade das perguntas. E avisou-me, que acima de tudo, eu teria de aprender a controlar-me, a dominar a besta, que assombra todos os amaldiçoados. Ouvia o que o meu Senhor me dizia, mas a minha mente estava dominada por duas perguntas. Só isso me importava: “Quando posso sair daqui?” “Como posso saciar esta sede nova, que me devora?” Será que ele não entendia a minha agonia? Que tolice, penso agora! Eu ainda não tinha entendido... Esperava respostas e reações humanas onde elas não existiam. Percebi uma mudança no tom da sua voz, quando me respondeu que a minha confusão não o perturbava, mas sim a forma como eu lidaria com isso. As suas últimas palavras antes de partir, foram " use o tempo a seu favor ". Não me acalmaram.
As horas, os dias, não tinham mais significado, passava do sonho à consciência alternadamente, sem isso parecer seguir nenhum padrão. Relembrei toda a minha vida passada, lembrei de coisas que nem sabia que sabia, e acima de tudo, tentava controlar-me. Eu estava ali por minha escolha e tinha sido educada para saber aceitar a responsabilidade dos meus atos. Fazia tudo para esquecer, aliviar, aquela sede e fome que me enlouqueciam. Inutilmente, claro. Por breves momentos e com um enorme esforço, relembrava as palavras do meu Senhor, mas já não tinha domínio sobre mim, e isso enraivecia-me ainda mais.
Alguém mais me visitou nesse tempo, um amigo. Ouvi o som do rodar da fechadura e da porta que se abria, e imediatamente eu soube de quem se tratava. Senti muito nitidamente a sua forma leve, com um afeto meio distraído, séria e ao mesmo tempo descontraída. Fora ele quem primeiro me tinha falado do mundo e dos seres da noite. Em grande parte devia-lhe o estar ali. Esse pensamento trouxe-me uma súbita vontade de o matar. E ri! Ele conseguia sempre tranquilizar-me, mesmo agora, por um pouco...Eu pressentia uma certa preocupação nele, porque naturalmente ele sabia como eu me sentia, afinal, já tinha passado pelo mesmo. A sua paciência comigo foi admirável, ouviu os meus gritos, reclamações e raivas. Ao mesmo tempo obrigava-me a articular de forma coerente, tudo o que eu estava sentindo. E esse esforço centrou-me, deu-me espaço para pensar e refletir. Por momentos aquela fome ficou um pouco mais tolerável. Depois disse-me, que agora que estava mais calma, tinha algo para mim. Algo que eu desesperadamente precisava. Mesmo antes de ele terminar de o dizer, eu já o sabia. Ele ia dar-me sangue! Ouvi-o aproximar se mais do caixão, sentia o seu cheiro e o do sangue muito próximo, ao mesmo tempo que me explicava como o ia fazer, que iria verter o sangue que trazia num frasco, por entre as frinchas da tampa do caixão, pois certas tábuas tinham um ligeiro espaço entre elas devido à antiguidade da madeira.
Fascinada, ouvi o leve som do frasco a ser aberto. A minha ânsia era tanta, pelo cheiro e desejo do sangue que sentia, que tive que fazer um esforço absoluto para ficar quieta e não gritar. Não podia perder uma gota que fosse! Apoiada nos braços, ergui o tronco o mais que pude e colei a boca às tábuas da tampa do caixão. Sentia o sabor acre da madeira, mas imediatamente senti a primeiras gotas de sangue na boca, escorrendo pela minha garganta, espalhando-se pelo meu corpo. O prazer era indescritível, era a sensação mais absoluta que eu alguma vez experimentara, naquele instante, mesmo sem elaborar o pensamento, eu soube que a partir de agora faria tudo, tudo o que fosse necessário, para saciar a minha fome e voltar a sentir o mesmo.
Bebi avidamente do sangue que me era dado, no fim chupei, lambi a madeira, era tudo precioso, eu não podia desperdiçar nada, não sabia quando iria poder-me alimentar de novo, mas mesmo que o soubesse, isso seria irrelevante. Faria qualquer coisa, para voltar a sentir aquela paixão, aquele arrebatamento. Eu tinha finalmente entendido a natureza da Besta.
Fiquei só. Mais calma, é certo, mas agora era a minha mente que estava inquieta, pesada. Apesar de não ter sido inteiramente saciada, a fome já não me atormentava. No entanto tive a certeza, que se pudesse sair dali, naquele momento, eu atacaria e mataria quem quer que fosse. Isso assustava-me e agoniava-me. Pela primeira vez, dei-me verdadeiramente conta da extensão da escolha que tinha feito. A eternidade e as possibilidades infinitas de conhecimento, do estudo de tudo aquilo que eu amava, tinham um preço muito alto. Demasiado alto para alguém como eu, que sempre tinha considerado a vida, todas as formas de vida, como sagradas. Eu precisava aprender a dominar-me, a controlar, não tanto a fome, que essa eu sabia que viria regularmente, mas o desejo e a paixão pelo sangue. Esses eu teria de aprender a dominar, ou iria deixar-me arrastar para uma bestialidade que abominava. Precisava aceitar que a minha sobrevivência dependia do que dá vida aos seres humanos, mas que o teria de fazer da forma mais consciente e racional possível. Disso dependia a minha alma e sanidade mental.
De novo o tempo se tornou indistinto, e a fome voltou. Tive mais visitas... Sei que o meu Senhor me visitava de vez em quando, mas é tudo vago e confuso. A única coisa presente, real, era a fome, e o extremo e absoluto desejo de a saciar!
O Abraço de Melusine - Parte 1