Sentidos aguçados
Era verão. Sentia a brisa fresca da manhã acariciando meu rosto enquanto corria pelos vastos campos. O brilho do sol brincava entre as enormes árvores enquanto emergia-se por trás das montanhas. O cheiro da grama verde, o pomar carregado de frutos, eu observava minha mãe colhendo as amoras para preparar minha torta favorita, ela era tão linda. Seus longos cabelos negros, quando tocados pelo vento pareciam plumas flutuando, sua pele delicada rosada como um pêssego, seu sorriso largo e seu olhar sereno na cor de mel. Quando a noite caia sobre a terra e a lua surgia na imensidão do céu estrelado banhando-a com seu brilho prateado, eu era levada para o meu leito de descanso e antes de adormecer minha mãe contava uma de suas histórias que enchiam meu coração de sonhos...
Fui transportada novamente para a realidade ao ser despertada de um sono que me embalava em sonhos com a minha infância, despertada por um som ensurdecedor. Pressionei as mãos contra meus ouvidos para abafar o barulho, meu tato estava tão sensível, conseguia sentir detalhadamente a textura de meus cabelos como se fosse possível conta-los um à um. O cheiro forte de umidade invadiu minhas narinas. Meus sentidos estavam imensamente aguçados e esse barulho começara me irritar. Minha boca foi se fechando em dentes serrados apertando-os cada vez mais, minhas mãos se fecharam em punho contra minha cabeça...Não! Não podia perder o controle, eu precisava me concentrar, isso fazia parte da minha nova condição de vida, ou eu aprendia à lidar com isso ou me entregava a demência daquele momento, e não, não era esse o meu objetivo, não tomei a decisão de ser transformada pra isso. Meu Deus, foi tão difícil! Finalmente comecei a me concentrar nos pequenos detalhes, foi como meditar, libertar a mente de qualquer pensamento que me mantinha presa naquele pesadelo e me concentrei somente naquele som. Sim, consegui perceber claramente, era o som de uma goteira que vinha de um comodo muito distante do qual eu estava, percebi que o local era muito maior do que aquele que acomodava somente o meu caixão. A goteira batia em cima de uma superfície sólida, era uma pedra, este lugar fora erguido por pedras. O cheiro da umidade que eu sentia poderia significar uma coisa: a terra abaixo dessas pedras estava molhada, provavelmente chovia lá fora e isso também explicava a existência daquela goteira.
Logo, um outro som chamou minha atenção, mas desta vez era suave, se aproximava com delicadeza, eram passos leves, pareciam flutuar como se o dono destes estivesse ciente dos meus sentidos altamente aguçados.
Então, pude sentir sua presença. Era ele, tão mais presente quanto antes. Meu corpo se manteve intacto, sem fazer um só movimento e lembranças vieram-me à mente como flashes: A primeira vez que eu o senti, a primeira vez que eu o vi, a primeira palavra trocada, o primeiro toque, o cuidado, a proteção, a paixão. Tudo, tudo fazia meu corpo ficar estático, meu coração acelerava quando ele se aproximava, um tremor interno percorria todo meu corpo. Ele era diferente, sim, mas eu também era, e isso me unia mais a ele, pois, por tudo o que passei em vida, aquele era o único lugar onde queria estar, onde precisava estar, onde conseguia ser eu mesma.
Ah! Meu amado, Luz. Agora, de fato, se tornara também o meu Senhor.
O meu coração já não batia mais, não o sentia acelerando com sua aproximação, aquele tremor já não existia também. Mas algo muito mais forte permaneceu - O Amor. E esse sentimento não seria mais levado para o resto da vida, mas sim, para toda a eternidade.